Repaginados, desafios perigosos ressurgem nas redes e alertam pais para mediação
- 16 abril
Desafios perigosos da internet voltaram. Ou melhor, nunca foram embora – só “trocaram de roupa” e ganharam cara nova, embora os efeitos nefastos permaneçam iguais. Somente entre março e abril, dois casos de morte durante possíveis desafios on-line estão em investigação e acendem alerta sobre a exposição de crianças e adolescentes à internet sem a devida mediação por adultos responsáveis.
Em março, na cidade de Bom Jardim (PE), Brenda Sophia de Melo, de 11 anos, teria participado de uma “trend” no Tik Tok chamada “desafio do desodorante”. Já no último dia 13 de abril, em Ceilândia (DF), Sarah Raíssa Pereira de Castro também teria sido exposta à mesma dinâmica. As duas vítimas sofreram paradas cardiorrespiratória, passaram pelo protocolo de reanimação, mas não resistiram.
A repercussão dos desfechos trágicos retomam o debate sobre os limites da exposição de jovens à internet, direito à privacidade e, também, a importância da mediação de pais e responsáveis. Nesse contexto, é importante entender como esses desafios surgiram, o efeito potencial que podem provocar e, principalmente, como se defender deles.
A regra geral é que diante de tudo que é produzido e publicado na internet, usuários precisam “ligar o desconfiômetro”. Porém, até para isso é necessária certa maturidade, que crianças não conseguem ter. Nesse sentido, o que é eficaz na defesa de crianças frente a conteúdos nocivos? Quais os caminhos e opções de pais e responsáveis?
Boneca Momo, Baleia Azul e os desafios perigosos
Lembra da Boneca Momo? O ano era 2018. Naquela época, pré-pandêmica, o Youtube praticamente reinava como uma das principais plataformas de criação e publicação de conteúdo na internet. E quando se fala em conteúdo, era meio que qualquer coisa: do bom ao ruim, e pouca ou nenhuma vigilância eficiente.
Foi nesse contexto que surgiu a Boneca Momo, um hoax – um boato da internet – que abriu a porteira para os desafios perigosos da internet. Curiosamente, eles seguem despertando interesse de crianças e adolescentes.
O fenômeno não é exatamente recente, mas uma contínua releitura de práticas antigas que se amplificam devido às características das redes: enquanto, nos anos 80, um desafio perigoso era feito verbalmente, na internet ganha outra roupagem e atinge muito mais gente.
A renovação dessas práticas ocorre por meio de narrativas sofisticadas e capazes de exercer algum poder sobre crianças, principalmente. No caso da Momo, seus olhos esbugalhados e lendas em torno de seu surgimento impunham certa autoridade sobre as vítimas. Relatos, na época, apontavam que os criadores de práticas perigosas afirmavam que a boneca apareceria na madrugada e mataria toda a família das vítimas caso elas não realizassem os desafios.
Atualmente, devido à presença massiva de jovens, redes como o Tik Tok, Twitch e Discord são as plataformas preferidas para a publicação de desafios on-line e suas novas roupagens. É para onde vão os olhares sempre que tragédias acontecem, pelo menos até que uma nova rede social seja criada.
Mediação de pais é fundamental
“Mas, quando uma história se repete, talvez a gente não esteja sabendo responder a algumas questões, que não são somente da família, mas sociais. Existe responsabilidade das plataformas e as ferramentas de retirada de conteúdos nocivos não são suficientes. Por isso, enquanto família, entendo que precisamos estar presentes na mediação”.
A fala acima é de Luísa Maria Freire Miranda, psicóloga, mestre em psicologia pela UFC (Universidade Federal do Ceará) e doutoranda em psicologia pela mesma universidade. Desde 2018, a pesquisadora conversa com o Jornal Midiamax sobre a prática de desafios perigosos. Desta vez, passado cerca de 8 anos, Luísa traz reflexão sobre a exposição precoce de crianças à internet.
“No momento em que dou um celular para meu filho, preciso questionar se vou dar conta de fazer essa mediação de forma adequada e constante. Por que dar um smartphone a uma criança tão nova, de 5, 6 anos? Se a gente não consegue responder isso de uma forma sistemática, talvez não seja o momento certo”, aponta.
Isso porque, conforme a pesquisadora, a mediação entre a criança e a tecnologia precisa ser contínua, pelo menos até esse indivíduo conseguir, de forma autônoma, reconhecer e avaliar os conteúdos consumidos on-line – o que certamente não acontece durante a infância. Ou seja: ao presentear a criança com tecnologia e não estar disponível para intervir quando necessário, é criar o cenário ideal para que situações de risco ocorram.
“As pessoas que vem de gerações mais antigas tendem a se desatualizar no que tange a uma mediação mais eficaz. Mas não é só sobre saber mexer nos recursos, é também sobre refletir acerca dos conteúdos consumidos. Na verdade, hoje há muitos vídeos que ensinam a fazer esse monitoramento, que ensinam os recursos de proteção parental, basta procurar na internet. Por isso, precisamos que os pais estejam realmente interessados em utilizá-los. Sabemos que isso dá trabalho, mas o que deve vigorar é justamente o interesse nessa mediação”, pontua a doutoranda.
A vida imita a arte?
Cada vez mais expostos à internet e sem a devida mediação pelos responsáveis, jovens também estão sucumbindo a crimes praticados não só na esfera virtual, mas, também, na “vida off-line”. Sucesso de visualizações, a série Adolescência, do streaming Netflix, apresenta a história de um jovem de 13 anos acusado de matar uma colega, em um contexto de hiperexposição a conteúdos misóginos na internet.
Coincidência ou não, operação deflagrada em Mato Grosso do Sul e mais 7 estados na terça-feira (15) resultou na desarticulação de grupo criminoso que utilizava plataformas criptografadas, como Discord e Telegram, além de redes sociais, para atrair jovens para desafios. Sete adolescentes infratores estavam entre os alvos. A situação é vitrine de uma realidade preocupante que é vista tanto na ficção como na “vida real”.
Nesse sentido, uma indagação é pertinente: o conteúdo consumido por jovens na internet têm a capacidade de transformá-los, necessariamente, em extremistas ou potenciais criminosos virtuais? A resposta é: depende, e muito.
“Nunca teremos uma resposta única quando diz respeito à complexidade que é o ser humano. Em geral, temos uma combinação de fatores que vão predispor o sujeito a apresentar determinados comportamentos, e não outros. A prova disso é que se você pegar adolescentes em um contexto privilegiado – homens, brancos, classe média, etc – se exposto a conteúdos extremistas, não teríamos o mesmo efeito em todos”, detalha Luísa à reportagem.
“Assim, a gente percebe que o sujeito não é um papel em branco. Ele tem ali uma base muito relacionada aos valores dentro de casa, à qualidade dos vínculos que têm com a família, com os cuidadores, com os pares, com a comunidade… Como ele se sente pertencente a um grupo que traz, para ele, uma noção de certo ou errado?”, pontua.
Privacidade X Mediação
O debate sobre mediação acaba se confundindo com a invasão de privacidade de crianças e adolescentes. Muitos pais hesitam em acompanhar por estar invadindo o espaço dos filhos. Existiria, portanto, uma maneira correta de fazer esse monitoramento?
Para Luísa, respeitar a privacidade desses indivíduos é importante, além de respeitá-los enquanto sujeitos capazes de tomar decisões. “Porém, fico pensando nos pais que perderam seus filhos… Se eles soubessem que algum tipo de quebra de privacidade poderia ter servido de alerta sobre conteúdos consumidos, será que eles se ressentiriam”, questiona.
Quer dizer, o debate é longo, mas dá pistas sobre prioridades nessa complexa equação, ao mesmo tempo que ficam cada vez mais claros os riscos da exposição precoce e não mediada de jovens à internet.
“É importante realizar algumas blitzes no celular, em busca do que pode ser considerado um comportamento de risco. Ainda assim, acho que estamos quebrando muito a cabeça discutindo sobre os limites de privacidade dos filhos, quando temos que nos preocupar se eles realmente precisam estar nesse lugar tão cedo, sem que estejamos preparados para promover mediação. Antes de se preocupar com privacidade, temos que nos preocupar porque temos que dar tão cedo um celular”, opina.
“Mas já que eles estão com um celular na mão, temos que limitar o tempo de uso, até porque sabemos que o excesso tira espaço de outras experiências sociais importantes. E se os pais tiverem algum tipo de insegurança, têm, sim, que pegar o celular, se julgarem necessário, para ver como é o uso por aquela criança. Afinal, quem são os produtores de conteúdo que os filhos gostam de ver? Que tipo de conteúdo eles têm publicado? Isso é mediação”, conclui.
Celular nas escolas
O ano de 2025 começou como um marco importante nas escolas brasileiras, com lei que proíbe o uso de celular nas escolas fora de contextos pedagógicos. O Governo Federal justificou a sanção da lei para amenizar a exposição precoce de crianças às redes, além do uso excessivo de telas – práticas favorecem o contato desse grupo com conteúdos perigosos, além, claro, do impacto negativo na saúde mental e física de jovens.
A medida pode ser benéfica para pais, que passam a ter oportunidade de acompanhar como filhos recorrem às redes e de tecnologias ligadas à internet.
“Enquanto família, sabemos que a mediação tem que estar presente. Se dei o celular, preciso fazer esse acompanhamento das formas de uso. Como já havia dito, não é só sobre conhecer os mecanismos de monitoramento ou sobre ter acesso e dominar o controle parental, mas também sobre propor aos jovens reflexões, bagagens que vêm com a maturidade, acerca dos conteúdos consumidos. O que precisamos é que os pais estejam interessados. Quando passamos a pensar nos riscos decorrentes dessa exposição, vamos ter entendimento que essas intervenções vão valer à pena”.
Operação Adolescência Segura
Na terça-feira (15), o Dracco (Departamento de Repressão à Corrupção e ao Crime Organizado de MS) cumpriu mandados de busca e apreensão na operação Adolescência Segura. O objetivo foi desarticular grupo criminoso que utilizava plataformas criptografadas, como Discord e Telegram, além de redes sociais, para atrair adolescentes para desafios.
As práticas iam de automutilação coletiva, crueldade contra animais, incitação ao ódio e até sugestões de ataques violentos, conforme adiantou a Polícia Civil em Mato Grosso do Sul. Ao todo, foram cumpridos aproximadamente 20 mandados de busca e apreensão, com 2 prisões temporárias de adultos e 7 internações provisórias de adolescentes infratores, em ações simultâneas nos estados de MS, SC, SP, PR, RS, MG e GO.
Conforme as investigações, a dinâmica do grupo incluía a distribuição de “recompensas” simbólicas aos que mais se engajavam nas atividades ilícitas. Em Mato Grosso do Sul, a polícia apreendeu provas digitais relevantes à investigação, que serão periciadas.
Os investigados poderão responder por associação criminosa (art. 288, CP), indução ou instigação à automutilação (art. 122, §4º, CP), maus-tratos a animais (art. 32, Lei 9.605/98), entre outros crimes, cujas penas somadas ultrapassam 10 anos de reclusão.
Fonte: Midiamax